quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A MENINA NO LIXÃO



Nyanna estava parada em frente de um imenso lixão, que mais parecia a um deserto de entulhos, dominado pelos milhões de latinhas de alumínios, montes de ferros distorcidos, papelões e outros objetos espalhadas. Há um bando de urubus que voam, e circulam no céu que mesclava entre o rosa, e o baunilha. Ali havia presença espetacular dos dois sóis, um deste era o mesmo que conhecemos há milênio dos anos, o mesmo que se chamava o Astro-rei, e o outro era cem vezes maior que o outro, chamado de planeta vermelho, com sua cor que varia entre vermelho e amarelo, daí se assemelhava a um grande sol. Ambos ficavam bem próximos do horizonte, na sombra de uma montanha íngreme. Uma visão surreal e encantadora. Enquanto havia uma beleza transcendental do sublime céu, e do seu universo com as suas estrelas que expandiam a cada dia, ali em baixo a visão é completamente outra. É triste. É desolador. Quem passa ali sente a alma ferida que leva um tempo para se cicatrizar. Por conta dos dois sóis, o calor ficava intenso durante a parte da manhã, e durante a tarde, ninguém se aventurava a ir lá fora; somente ao entardecer, quando o calor tende a ser bem menos castigante; a terra do lixão exala o fedor que vem acompanhado pelo o vento que balança os seus longos cabelos vermelhos, que dançam e balançam.

 Os olhos verdes claros da Nyanna expressavam um misto de indignação e tristeza. Indignação, porque estava havendo um desacato à natureza, por jogar todos os lixos naquela terra. Tristeza por causa das pessoas que vivem ali, com suas casinhas de papelão e latão. Havia pessoas que circulavam e andavam por sobre a terra de lixo. Alguns catavam objetos metálicos, outros de papeis para recicláveis, e também algumas crianças que procuravam por brinquedos por baixo dos entulhos vindos de todas as partes da cidade.

 Quando Nyanna e seu grupo de amigos voluntários vieram a este triste espaço, para distribuir as cestas que continham os alimentos básicos, e principalmente alguns galões de águas para banhos, já que nesse local não havia água tratável, ao chegarem, dezenas de famílias que vivem no lixo correram em sua direção, na esperança de conseguirem suas desejadas cestas e latões de água. Todos cercaram a picape, e o grupo que distribuía água e alimentos a cada uma das famílias.

 No meio de todas as pessoas agitadas, que cheiravam mal, Nyanna foi surpreendida, nem mais, nem menos, por algo vivo que enlaçou a sua coxa. Ao baixar a cabeça com certo temor, logo deparou uma pequena criatura com um lenço que cobria a sua cabeça. Uma menina. Ela devia ter uns seis anos. Um amor de criança, toda imunda, dos pés até o rosto, e seus olhos sobressaiam as cores azuis como nunca vira antes. Seus olhos pareciam remeter o céu azul que outrora a terra teve. A luz dourada dos sóis beijava o seu perfil, e seu olhar cheio de vida. e de brilho expressava uma ternura inigualável; parecia transmitir uma força de esperança, não sabia de onde e como...

 Antes que a Nyanna abrisse a boca, a menina lhe fitou e disse baixinho, de modo dócil e suave, como ao som de uma harpa de um anjo escondido por dentro dela.

Tia, me ajuda, por favor?”

Os olhos da Nyanna emudeceram. Vendo aquele dócil rosto da criança, seus olhos azuis e vivos, e a sua voz como um anjo, não havia como negar a um pedido daquela criança.

 Preciso de água para minha mamãe”

 Nyanna olhou ao seu redor, procurando a mãe dessa graciosa menina, mas nenhuma dessas pessoas se apresentou como sendo a mãe dessa pequena e notável criatura. Então, a menina, com sua voz de anjo, disse:

 Ela não está aqui. Ela tá com dodói. Estou fazendo tudo sozinha e tenho que ajudar a mamãe! Por favor, tia, me ajuda!”

 Nyanna sentiu um nó na sua garganta. Sua alma foi atingida por um violento soco emocional, que percorreu por todo o seu corpo, até no profundo do seu ser. O vento se misturava entre o fedor do lixão, e o perfume agradável que advinha da natureza escondida por detrás daquele cenário horrendo, ao mesmo tempo em que seus olhos fitavam aquela menina que agarrava a sua perna. Ela meneou a cabeça, e foi buscar um galão de água de dez litros, e o carregou com esforço até a menina. A menina soltou uma gargalhada ao ver um galeão deixado no chão e olhou para os olhos da Nyanna e disse:

Obrigada, tia!”

A menina, por incrível que possa parecer, pegou o galeão de dez litros, como se fosse uma a uma boneca. Ela tinha uma força inigualável e Nyanna ficou preocupada, temendo que o peso pudesse machucá-la. Mas antes mesmo que a mulher tomasse uma atitude, a menina disse, com um sorriso esboçado no rosto:

Não preocupa comigo! Estou acostumada! Sempre carrego minha mãe, que pesa mais do que este galeão de água, e tenho que lavá-la todos os dias. Obrigada por tudo, tia!”

E depois disso, ela se afastou da Nyanna, e rumou por entre os montes dos lixos, sob os urubus que voavam e circulavam a redondeza, até desaparecer. O momento em que os dois sóis descem por trás das montanhas, deixando o céu ainda mais colorido. Foi o momento em que Nyanna sentiu um grande impacto como nunca sentiu antes. Ela deveria ter feito algo a mais, do que simplesmente ter ficado parada, e olhando feito uma boba para a pequena criatura. A força daquela pequena menina, sua ingenuidade em relação a tudo que está acontecendo; a pobreza; a falta de qualidade vida, de educação, do lar agradável; nada disso tirava o sorriso dela. A alegria e a esperança ainda permeavam em seu interior infantil, e assim ela se foi. Nyanna olhou para seus amigos que trabalhavam com o suor percorrendo a testa enquanto terminavam a distribuição. Ela sorriu, mas sentia um aperto de dor no coração, e em sua alma, tudo por causa daquela menina, daquele pequeno anjo sujo e sem asas. Ela desviou seus olhos para o chão, deixando a lágrima rolar no rosto. E a lágrima, com seu reflexo de dois sois dourados, caía numa fração de segundo no solo, e para sua surpresa, um único girassol, com suas pétalas amarelas, permanecia em pé, e firme em meio de todas as ferrugens e papelões. Ela sorriu. Sabia que nada disso é tarde demais. Há uma esperança.

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