quarta-feira, 24 de agosto de 2011

CONTO: O CÃO SEM DONO

Putz! Como dói muito! Eu não imaginei que o impacto de um carro pudesse me causar tamanho estrago em meu corpo, e que iria doer tanto, mas doeu... Caramba! Como dói! Eu não posso me mover; nem posso me levantar e correr por ai; parece que o meu corpo grudou ao chão como chiclete esmagado sob a sola de um sapato. O asfalto queima como se estive me fritando. É verão agora. e o sol brilha com tamanha fúria. Odeio isso. Odeio calor. Mas pouco me importa agora...

Não sei por que tinha que acontecer isso comigo; precisei passar por este momento para poder me salvar um menino ruivo. Pouco antes do acontecido, lá estava ele dando uma comida para mim, pois se sentiu em pesar; sentado à sombra de uma árvore, faminto e cansado depois de percorrer um longo caminho.

Aquele menino, mesmo sendo tão pequeno, tem grande coração. Eu e ele temos algo em comum: somos ruivos. Quando ele se afastou, e foi correr em direção a outra criança que segurava a bola, para brincar, senti-me feliz por ele, enquanto saboreava o pedaço de pão dormido com manteiga, enquanto sentia o vento soprar em meu rosto. Ah... Como é agradável o cheiro da natureza... Fiquei ali por um tempo enquanto as pessoas passavam à minha frente, olhando-me com desprezo. Ah, estou me lixando para essas pessoas, elas não possuem o grande coração daquele menino.

Estava prestes a cochilar, vi a outra criança lançar a bola de longe, e o menino ruivo correr atrás da bola, que pulava em direção à rua, fora então que senti o cheiro de perigo que rondava por ali. O carro vinha de longe, mas pude ouvir seu motor... Senti que a morte pairava por sobre aquele menino de grande coração. Estava prestes a acontecer uma coisa terrível; não poderia permitir... Não com o menino ruivo.

Levantei-me e corri o quanto pude, indo em direção a ele que já estava no meio da rua, pegando a bola no asfalto. O carro se aproximava, e eu consegui chegar a tempo. Saltei, e empurrei o menino para longe, segundos antes, de o carro passar por cima de mim. Doeu muito, no entanto...!Salvei o menino da morte.

Ah, vejo agora o céu. E que céu! Nunca tinha reparado o céu tão azul e vívido. Certamente, quando alguém está prestes a morrer, a sua visão se torna cada vez mais aguçada, deixando todas as coisas ao meu redor mais vivas e palpáveis. Estou vendo agora os rostos dos transeuntes. Olham-me com pesar. Nenhum deles ousou de se aproximar, e me ajudar. Por que será? Fui atropelado e ninguém quer me ajudar? Sinto o cheiro de sangue alastrando no chão do asfalto. Meu sangue. Quente. Borbulhado por causa do calor do sol. Que horror! Por quanto tempo vou ficar ali?

Por entre os transeuntes, posso ver um jovem careca com aquela coisa brilhante na orelha, que somente as mulheres usam, veio até mim com uma grande pedra e o vi ergue-la; seus olhos fitaram os meus, e parecia querer dizer algo: Vou poupar a sua dor. Será uma morte rápida e indolor. Mas o jovem não o fez, o menino impediu gritando - Não o mate! Não o mate! Ele me salvou! Por favor! Não o deixe morrer! – a voz do menino parecia um misto de dor e revolta. Sinto o cheiro de suas lágrimas. Pura. Limpa. Um odor agradável ao meu olfato. Lembra o cheiro das gotas de orvalho num raiar de primavera. Fresco. Ah, como é doce este cheiro que impregnam o meu olfato.

Vejo o seu rosto com sardas; cabelos ruivos, e olhos azuis como o céu! Não; acho os olhos dele mais lindos do que o céu. Tão doce. Tão compadecido de mim. Gosto muito dele. Nenhuma outra criança tem coração igual como este. Valeu a pena salvá-lo. Sacrificar-me-ia várias vezes pelo o mesmo motivo. Pena que não tenho setes vidas, como o gato. Maldito gato sortudo!

Quero levantar-me agora, poder acolher o meu amigo e dizer - está tudo bem, meu amigo. Estou bem e vou ficar sempre com você. Mas não posso. Estou imóvel. Mais pessoas começaram a me rodear. Veio a mãe do garoto, que o pegou e levando-o para longe de mim. Por que ela está fazendo isso? O menino esticou o braço, para poder me tocar, me cuidar, mas a mãe não permitiu. Ele sumiu de minha vista, mas sinto o seu cheiro de sua lágrima, que impregnou o ar.

Olho para o céu... Tão imenso azul e profundo. Dá-me vontade de mergulha para sentir a sensação do frescor e da paz.

Ai! A minha vida está indo embora pouco a pouco. Meus olhos começam a ficar pesados e isso me deixa assustado. Sinto o cheiro da morte. Está vindo... A lembrança do menino continua impregnada em minha mente.

Errr... Acho que já está em minha hora. É melhor assim. Não dá para viver no mundo dos humanos. Bicho homem tão egoísta; materialistas! Machucam; ferem uns aos outros. Não entendo isso. Achei que seriam evoluídos como a nós, meros cachorros mortais, enganei-me. Eles têm muitos a aprender. Ouço um deles falar sem menor cerimônia: - Graça a Deus! Um vira-lata a menos em nossa rua. Foi melhor assim.

É; eu também acho. Foi melhor para mim, partir deste mundo mesquinho cheio de gente sem coração, exceto o menino ruivo. Sinto o vento me acolher. Como é agradável o vento, que aliviar o meu corpo, a minha dor está desaparecendo. Que bom! Foi melhor assim. Fecho os meus olhos, solto o meu último suspiro e sinto agora a sensação de paz me acolher.

Agora... Sim...

...estou... Em...

...paz.


Texto e criação do autor Denis Lenzi, ao utilizar este texto, por favor, não se esqueça de mencionar a autoria. 

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